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Apetece-me vaguear pela cidade
Pisar as pedras da calçada
Que serpenteia os nacos de construção
Que se empilham nas margens desta rua
Como se a seguissem até ao cruzamento
Como se o curso da água que corre
Pelos recantos e baixios da faixa
Que nada tem pelo meio da vereda
Se esvaíssem por ali
E segue até ao cais que espera
Impaciente pelas novas
Que chegam das ruas e das estradas
E dos campos
Todos eles para trás desta rua
Que chega a este cais
E que o admira pela frente
Envolta pela grande praça
Que admira espantada
E de olho arregalado
A lisura e secura do líquido em estado horizontal
Que parece que está,
Mas vai deslizando por ali abaixo
Sem que os olhos distraídos que por ali vagueiam
Se apercebam que o que está amorfo
E indiferente aos seus olhos
Segue o curso e o ritmo próprio
Do que não quer ficar por ali.
Mexe também indiferente
À presença de quem está
E que por ali vagueia, e fica
E que vai deixando um odor,
Marca de presença de vida
Animal, vegetal
No ar do reino vegetal, animal
E imaterial de quem fica
E que pensa
Deixando rasto por ali
E por todos os lados por onde
Passa e permanece.
Atirando o olhar para o outro lado do cais
A água passa imperturbável
Ao odor de quem não acompanha o seu passar
Noutra senda, noutro sentir corrente
Com outro afazer
Que não tem a ver com a azáfama dos humanos
E procura outra dimensão que não aquela
De quem lhe aperta a garganta
Entre margens que aparentam aveludadas
E o deixam escapar por entre os seus lábios
Húmidos e embevecidos
Por sentirem aquela humidade
De gente tão distinta como aquela
Que escorre por ali a fora
Como se fossem naturalmente lubrificadas
Para que o líquido escorra naturalmente
Com a paragem marcada para reabastecimento
E viragem para outras paragens.
Olho o esforço despendido
Por todas estas forças
Convergentes, mas altamente dissonantes
Nos interesses auto parcelares
Porque esta existência é marcada por instantes próprios
E que chocam facilmente com os interesses coletivos
Que são o polo oposto com o ego umbilical
E atiram com que facilidade
Para o egoísmo exacerbado
Do que é estupidamente marca pessoal
E rasto de fedor incontrolável
Inalado no ar de todos os sere s que o são
E dos que o tentam ser
Seres animados pela energia reativa
Da inveja e do asco
E que, desmontadas, não são mais que bosta petrificada
E que se arrasta por estas ruas que parecem pessoas de bem
e benévolas
Estupefactas pela admiração que lhes dedicam outros seres,
Esses sim, seres diferentes, indiferenciados
Que não têm notoriedade
Nem interesse por se sentirem diferentes
E amados, e arrebatados por outros valores
Que se podem apresentar pela dignidade
De aparecer, e de estar
Por que estar também tem saber
E o saber também se instala
E conquista
Em que se anota com dificuldade de estar, e de ser
Mas continuam a teimar em respirar pela narina
E a olhar pelos olhos esbugalhados
Da admiração espantada
E desenfreada.
Gostaria de fazer uma viagem por dentro de todos estes olhos
que olham por dentro. E miram por fora
Vão e veem, sobem e descem
E despem o que é despido
E revestem tudo o que é movido
Revestem com desprezo e indiferença
O que é diferente
E o que é naturalmente parvo e estúpido
Pois que sendo estúpido se torna naturalmente aceitável
Pela hoste que é raça de entendimento animal
E por isso se torna acontecimento banal
E o que é banal é socialmente aceitável
Pelo que de grau de rigor
Sendo aceitável, não é relevante
Pois o aceitável é concordância fraca
Básica e repugnante
E pelo cais que desliza da andança
Passa o produto das sociedades
E o suor das pessoas
O dinheiro dos agiotas
O esvoaçar dos pombos
E os ovos moles das gaivotas
Sem que para tal tenha feito
Qualquer esforço de rimar
Os navios acostam impávidos
Aos movimentos dos circulantes
Acomodam-se sempre do mesmo lado da colina
E do mesmo lado dos mesmos
Pois a postura é contínua, repetida
E o cais apara o golpe da batida
Sem disso se queixar
Sem anotar a dor infligida
O escorrido do piso
Não é pó não é vapor
Tresanda a ácido
A mijo
Nas pedras maltratadas
Do tráfego dos artigos escondidos
Entalados no contentor
É maldade do humano estupor
Cama aberta sem almofadas
Água branca sem sabor
Escorridas das encostas
Das ideias corcundas anafadas
Registo o som do silêncio
Entranhado no borburinho das ideias
Com o timbre da confusão
Gerada no esperma da fantasia
Em uníssono com as vogais da elegância
A voz desgarrada da ilusão
É nada que tudo porfia
E em tudo o que nada alcança
Chora lágrimas de cortiça
Granulado de vinho e sangue
Do porco acabado de morrer
Misturado com sal
Beleza retocada e postiça
Vapor de inspiração
E languida capacidade de resignação
Mas o rio
O rio corre sempre indiferente
Sem olhar quem passa
nem por quem passa
E segue o seu destino
Alheio às máquinas e geringonças
Que descarregam os navios atracados
E que trazem as especiarias de plástico
Vindas do oriente
E que pululam nas lojas
Que estão abertas todos os dias
Durante cinco anos
Até que se esgote a isenção fiscal
Mas é assim que se vive
Ao longo das margens deste rio
Que corre sem cessar
Impávido às quotas leiteiras
E à imposições do limite de produção
Da união europeia
Em troca dos milhões e milhões
Que entraram no bolso de meia dúzia
E o restante dos dez milhões
Está a pagar as favas
E não as come
Para que o curso do rio não se altere
E o rio corra sempre altivo
e indiferente ao desemprego
e à emigração
à pobreza cada vez mais acentuada
à dor de alma instalada pela vergonha
De se sentir mutilado na cidadania
Mero número sem contar pra nada
E arrumado na prateleira da dignidade
E o rio
O rio não para
E segue o curso de tantas vidas
Tantas ilusões que se criaram
As esperanças que pairaram por cima das cabeças dos números
Os números que foram relegados para sucessão numérica
Mergulharam na desilusão
E assim se mantém no curso deste destino fadado
De correr sempre para o mesmo lado
Indiferente ao curso dos números.
LUMAVITO
10/05/2015