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FLORES DO OÁSIS

por avidarimar, em 30.06.15

Neste terreno inóspito

Cresceram catos

Crivados de espinhos

Auto defesa

No meio agreste

Só eles resistem

 

Os dromedários cobiçam-nos

Não há flor que suporte

Tamanho rigor

Nem sequer ervas daninhas

Invadem muitos quintais

Mesmo assim

Há quintais que são desertos

Onde o vento fustiga a areia

Modelando as dunas

Ao seu jeito

 

Quando o vento não sopra

O sol escalda

E estrangula as gargantas sedentas

A pele cansada

Vai resistindo como pode

 

Neste deserto há um oásis

Onde me abrigo

E rego às escondidas

Os canteiros

De cravos na janela

Rosas encadernadas

E todas floresceram

 

Nova corrente de uns anos

Uma peste contaminou os quintais

Tal como mosca do oriente

Nos ares uma poeirada

Que nos seca a todos

o anticiclone soprou-a

Do norte de África

E no meu jardim

A terra cansou

O estrume fraquejou

As folhas amarelecem

 

Neste mundo lusitano

Há um deserto de ideias

As ervas daninhas prosperam

Desaprendemos reinventar

Participação ativa

Nos destinos de nós próprios

A fúria da sobrevivência

Retira lucidez

O fogo do desespero

Consome-nos

No que é mais rico

Dignos participantes

Do futuro dos nossos filhos

Que aqui murchou

E eles partem em debandada

 

Nos corações calcinados

Em cada jovem que emigra

Seca uma flor no oásis

Só os catos resistem

 

LUMAVITO

30/06/2015

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publicado às 23:58

POEMA CONSTRUÇÃO

por avidarimar, em 29.06.15

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A musa escava e funde

O alicerce da construção

A parede ergue-se

Tijolo a tijolo

As sílabas da areia

Da água e do cimento

Numa argamassa

Justamente calculada

A inspiração do momento

 

Em esquadria ou em linha

Os decassílabos da evolução

Fecham espaços

Abrem horizontes

Descrevem sentimentos

Em cada palavra

Um tijolo selado na construção

 

Sem alma

A parede cresce

Sem resistência

O varão de aço do pilar

Dá-lhe o carater de solidez

 

A viga mestra da estrofe

Encerra o sentido lírico da vida

O cimento confere o milagre

Do equilíbrio do ser

 

O poeta é o servente

E o pedreiro do poema

O desalinhado do vigente

É o arrojado e o prudente

É barro do outeiro

Pá betoneira e obreiro

É o ferro e o betão

Telhado e fundação

Arquiteto e engenheiro

 

É janela ombreira e lintel

É tinta trincha e pincel

Desenhador medidor orçamentista

De todas as profissões

É o primeiro e último da lista

É cofragem de madeira

Deslizante funcional

É sonhador a vida inteira

Pedra arrancada do matagal

 

É esquiço planta e alçado

É sacada e telha de beirado

É régua talocha fio de prumo

É o mapa em pormenor

De uma vida sem rumo

 

LUMAVITO

29/06/2015

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publicado às 22:53

IMAGEM DIFUSA

por avidarimar, em 24.06.15

Para lá da superfície do espelho

Há sempre um ser

A luz e a sombra

São a imagem

Também sentir

As formas são realmente

De um corpo

Estupefacto

Assim mesmo

A barba por fazer

 

Os dedos tocam a superfície

Sentem o enigma

O cheiro do sangue nas veias

Os olhos esbugalhados

Estarrecido

As arestas e os vértices

Do quarto sem fundo

Como alas dum corredor sem fim

O branco das paredes

Refletido na face enrugada

Os cabelos desalinhados

Nesta natureza fingida

Só as flores de plástico não murcham

Os momentos de uma vida

Feita em bocados

 

Assim o espelho

Desmaia uma pessoa

E desperta uma angústia

Cravada de um suor

Quente e frio

Sal e vinagre

 

Ao espelho não se vê o por do sol

É um nevoeiro constante

Descortinar a luz

Só por milagre

 

LUMAVITO

23/06/2015

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publicado às 01:33

OS DIAS DE HOJE

por avidarimar, em 20.06.15

Nos dias de hoje

Ser feliz

É nadar em dinheiro

A soldo da rendição

Dos princípios de grau cimeiro

 

Viver feliz

Hoje em dia

Nesta vida de ilusão

Tem condição de desistir

De ver no olho o aguieiro

 

Saborear o sumo da vida

Tem alto preço

Não viver do ilusório

Do material acessório

Não ser larápio

De sucesso

Tanta gente que eu conheço

 

Dinheiro não é pólen nem é sémen

É antes um vento seco

Que sopra forte de frente

Desgasta a pele

Carcome a mente

 

Não é ovário

Nem trompa de Falópio

É do carater

O hábito do ópio

Um estado de boémia

Que vai criando dependência

Vai crescendo ao microscópio

E explode septicémia

 

É alma vendida

À desistência da corrida

Do valor que a vida confere

Em troca

Duma paz podre qualquer

 

LUMAVITO

19/062015

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publicado às 00:21

HORA DE SESTA

por avidarimar, em 16.06.15

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Uma estrada empoeirada

Sol a pino agreste

Uma árvore ensolarada

Uma sombra que se apreste

Vem a calhar

Que nem bomba

Esqueleto esticado

Como quem tomba

E se deixa cair para o lado

Uma breve sorna

Num instante mergulha

Em banho de água morna

Nas nuvens a levitar

Ressona que nem grulha

 

LUMAVITO

15/06/2015

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publicado às 00:21

VIDA DE GATO

por avidarimar, em 15.06.15

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 O gato mal está

Está ali

Faminto

Pelado

Cadavérico

Arrasta-se no muro

Quase desfalecido

 

Já tinha sido

Animal de estimação

Ultimamente

Perdeu o pelo reluzente

O dono achava-o remeloso

Fez-se à vida de rua

 

Morreu trucidado

Por um cão vadio

À porta da quinta

 

Agora o dono diz

Coitado do bicho

Em pequeno era tão brincalhão

A senhora derrama

Lágrimas de crocodilo

E o menino

Fez-lhe um funeral digno

 

Tão queridos que eles estão

 

A minha senhora

Não gosta de gatos

Dentro de casa

 

Por esta minha restrição

O meu gato

Que está por nascer

É bem tratado

Felpudo

Anafado

Tem um guizo ao pescoço

Ronrona à lareira

Afia as unhas

No tapete

Mas não arranha

Tem um bigode

Que faz inveja

Ao barbeiro do meu bairro

 

Quando as senhoras pilecas

Veem o meu gato

Ficam aborrecidas

Maldito bicho

Sempre a dormir

O estupor do dono

Não se incomoda

E nos tempos de ócio

Brincamos no chão da sala

Com uma bola

E um cordel

Estou tão feliz com ele

Já aprendi a miar

Se me picam

Sem que se note

Arranho

Bem mais que o bicho

 

LUMAVITO

14/06/2015

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publicado às 00:20

SÁBADO VAGABUNDO

por avidarimar, em 13.06.15

 

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É o trilho do elétrico amarelo

Que passa buliçoso

O cortinado da janela

Espreita a calçada

O vagabundo dorme

No banco de jardim

O cobertor é de plástico

E um cartão

 

Os gatos espreitam o cio

Capto o olhar do transeunte

Turista nórdico encalorado

Num mês que é mais frio

Santa Apolónia está calma

Os comboios descansam da viagem

Ancorados na almofada

 

A cidade ensonada

Escuta o deslizar do rio

Na manhã de sábado

Cinzento e preguiçoso

Há um ambiente soturno

A pairar

E porque não é dia de trabalho

Os cacilheiros já não correm

Deambulam

Respirando fundo

 

E porque não gostas do vento

Nem da chuva

Ficaste em casa

Dizes tu

No quentinho

O sábado é pra descansar

 

Eu vagueio

Sem rota nem relógio

deslizo nas ruas semi desertas

Banho-me

Na pacatez do silêncio

 

LUMAVITO

13/06/2015

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publicado às 14:21

SOSSEGO

por avidarimar, em 12.06.15

Se algum dia sem aviso

Eu saltar o muro desta cerca

Das pessoas com juízo

Não me sigam mais

Nem me tentem deter

Deixem-me saltar os quintais

Até ao alvorecer

 

A essa respeitosa gente

Que integra se afigura

Ácido consciente

Deveras sanguessuga

Fala-lhes da minha loucura

E dá-me tempo para a fuga

 

A minha fábrica de ideias

Carece de sossego secular

Pra escutar a balada do homem comum

Como a brisa que corre branda

Melodicamente de embalar

Em prol de quem debanda

 

LUMAVITO

12/06/2015

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publicado às 23:41

TANTAS COISAS

por avidarimar, em 08.06.15

Esperava eu ver coisas

Que me mostrassem coisas novas

Com o tempo que ainda não vivemos

Esse tempo está atrasado

E ainda não aconteceu

Foge-nos entre as mãos

Esse tempo

Incessantemente não temos

Um fim de tarde

Com o sol a esconder-se calmamente

Como se tivéssemos

Todo o tempo do mundo

Contar as estrelas

Penduradas no firmamento

 

Esperava eu ver coisas

Como a maresia

Que se instala e cola

Nos corpos meio despidos

Enquanto as árvores despontam

Por entre os riachos

Que deslizam na floresta

 

Esperava eu assistir

Serenamente

Ao teu sorriso

Ao olhar que os pássaros

Esvoaçam de ramo em ramo

E debicam a água do riacho

 

Esperava eu ver coisas

Com o tempo que ainda não vivemos

E que estupidamente não temos

Para saborear cada momento

Deste tempo tresloucado

 

Esperava eu que viver o tempo

Fosse uma coisa natural

E em que não houvesse

Sete horas pra levantar

E o levantar

Fosse uma coisa sem hora

E que a função

Não fosse repetir

O que o tempo nos obriga

 

Esperava eu que as coisas

Pensamentos e ideias

Não fossem um amontoado

De pontos e vírgulas desgarrados

Em que a linguagem

Estivesse nos olhares

E o silêncio fosse

O cumular das emoções

 

Esperava eu ter tempo

Contigo acertar calmamente

Esperava

De mão dada

Olhar pra trás

E com a nossa linguagem

Dizer que este tempo que já passou

Valeu a pena

E vamos continuar

 

Esperava eu encontrar coisas

Em que as coisas

São palavras com sentido

E a sua direção

Seja uma viagem permanente

Sem desvios

Nem atropelamentos

 

Esperava eu ter nas coisas

A estrela polar

Da nossa estrada sinuosa

Sentir o coração sereno e calmo

Sem se deixar embalar no vazio

Dos pesadelos da carne ferida

Rasgada pelos lobos esfaimados

 

Esperava eu encontrar

Coisas enigmáticas

Esmiuçá-las até à gema do caroço

E plantá-la na terra fértil

Do nosso quintal de emoções

Regá-la com a água

Do teu riacho

Esperava eu ter tempo

De a ver brotar

Como os nossos rebentos

 

LUMAVITO

08/06/2015

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publicado às 23:37

GRITO DE REVOLTA

por avidarimar, em 06.06.15

Em cada esquina crepita o silêncio

Pela viela viaja uma lágrima

Solta pelo exército de emoções

Engrossa um mar de tristezas

Corroídas pelo sal do desespero

 

Oh pátria oh nação

Expurgas todos os líquidos

Que te correm pelo corpo

Definhas as raízes desenterradas

Pelos algozes capeados de veludo

 

Oh pátria oh nação

A geografia da liberdade

Resume-se a um vale

Em garganta espartilhada

Consumida pelas labaredas do poder

E que apagam a chama dos seus amantes

 

Oh pátria oh canção

Não deixes de cantar

Um país a desmoronar

O crepúsculo não é só queda

Também é claridade do oriente

 

Oh canção oh grito de dor

Não te rendas

Subleva-te

Vai de boca em boca

Eleva a tua voz da revolta

Vai mundo fora

Diz aos navios em alto mar

Que os outros secam a esperança

Deste povo estrangulado

 

Oh canção pauta de música

Entoa os versos feridos do poema

Acompanha a harpa que chora

Puxa pelo violino que geme

Espalha pelos sete cantos da cidade

Que apesar de moribundos

Ainda não morremos

 

No céu cinzento

Deste mar turbulento

Há gaivotas livres a voar

E os tambores já rufam

Ecoam cada vez mais forte

E troam a reunir

 

LUMAVITO

06/06/2015

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publicado às 20:35

MUSA

por avidarimar, em 05.06.15

A teu pedido

Numa página escrevi cinco linhas

“Faz-me um poema de uma vida ”

E a inspiração esgotou-se cedo

Desalento

O teu olhar perdido sugeriu em mim

O reviver de cada momento

Os temas e as ideias

Que juntos construímos

 

De alto a baixo

Sem esquecer vereda

O teu corpo sulcado

De palavras desenhadas

A pincel de seda

As silabas pronunciadas

Com o vigor do prazer

Os sentidos elevados ao máximo

O rubor

Das curvas suaves do ser

Um esplendor

Os cálculos simétricos

Do firme pisar dos teus pés

A candura que te trespassa

Disseminada de lés a lés

 

Seios robustos

Montes gémeos

Ornamentos atuais

Antes

Fontes inesgotáveis

Venéreos locais

Um corpo de uma vida

Uma vontade sempre acrescida

De calcorrear caminho

Num girar constante

Como velas de moinho

Um fogo permanente

O fervilhar aceso das emoções

O orgasmo quente delirante

Na justa dimensão do teorema

E no local onde os sonhos acontecem

Despontou o poema

 

LUMAVITO

05/06/2015

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publicado às 23:51

MEMÓRIAS

por avidarimar, em 04.06.15

O sol nasce do lado do olival.

A estrada empedrada acompanha o movimento do sol.

Da janela do quarto dos rapazes, se queremos ver o sol, não podemos abrir o estore, nem correr as persianas.

Na janela do quarto dos rapazes, os vidros são de madeira, ressequida pelo tempo.

Do lado do olival, havia uma figueira, a figueira grande, tão grande que nos roubava o sol que entrava pelas frestas da madeira.

Por roubar o sol que nascia do lado do olival, o meu pai cortou a figueira grande.

Para que não perdêssemos a memória da figueira que tapava o sol, o meu pai deixou-lhe o filho primogénito.

O eleito cresceu do lado do sol, que irrompe todos os dias, sendo avistado apenas pelas frestas do quarto de fora, o quarto dos rapazes.

Eu nasci em Outubro, o mês do limbo, em que a faina agrícola não tem uma tarefa específica.

Os figos estão apanhados. Alguns ainda secam na eira.

A vindima está feita, e o mosto já fermenta. Em breve provar-se-á a pinga.

Aguarda-se que a azeitona amadureça.

Nesse mês, o sol nascia exatamente pelas frestas da janela do quarto de fora.

Antes que o sol nascesse, o velho despertador tocava no quarto dos meus pais, às cinco e um quarto.

E o António, dorminhoco como era, nada ouvia, ou pelo menos não dava sinal.

Eu registava o som, impelia um movimento de rotação sobre mim, e adormecia, ancorado nas novidades de cada dia.

Enquanto eu, sonolento, ainda dormitava, o meu pai cavava a vinha, a seguir ao olival.

Rigorosamente às seis e trinta e cinco, sentava-me mecanicamente no colchão de camisas de milho, e aceitava o covilhete das sopas de café com leite, sempre à mesma temperatura. Enquanto fazia o almoço para levar para o cantão, o meu pai brindava-me com o pequeno-almoço.

O António, esse, dormitava.

Levantava-me da cama de ferro, que tinha um colchão cheio, bem atestado de camisas de milho. A tecnologia da palha de centeio já tinha ficado para trás.

Na estrada empedrada, passavam alguns carros por dia. Pelo roncar de cada motor, poder-se-ia decifrar o abastado que passava.

A estrada empedrada que nos conduzia ao resto do mundo era a mesma que ligava à estrada de alcatrão, onde o meu pai tratava do cantão.

As giestas, os ciprestes, as curvas e as valetas, o grau de inclinação na contracurva, a estatística do trânsito, eram disciplinas na faculdade que o cantoneiro frequentava diariamente.

Em todos os finais de tarde, a bicicleta de três mudanças surgia imponente na curva junto à escola, a minha escola, e a bicicleta do meu pai reluzia, mesmo sem o reflexo do sol, que todos os finais de tarde, escondia-se por detrás da serra de Aire.

Nesse tempo, tudo era calmo e certo, ou, pelo menos, nada de anormal se passava. As palavras mais soletradas formavam um léxico reduzido.

À pacatez, juntavam-se a modéstia e a humildade, sempre apoiadas na honestidade.

Caridade era um vocábulo recorrente, acompanhada da inseparável seriedade. A parca cultura e desconhecimento do mundo não era motivo de vergonha.

Valores morais não faltavam. Merda era termo banido da linguagem em sociedade, e só pronunciada às escondidas. Graçolas surgiam repetidas, como chavões aplicados em qualquer enquadramento.

Os sermões do prior eram o mar em que os espíritos navegavam, quase que submersos, tal a carga que transportavam.

Aparentemente, tudo era pacífico.

Aos poucos, o órfão da figueira grande tornou-se a figura esguia, a figueira nova, alta, porte altivo, e era a pista encantada do escorrega.

Aos poucos, a bicicleta reluzente deu lugar à Zundap, também ela de três velocidades.

O olival foi dando lugar à vinha nova, que acrescentava a velha vinha. Há que garantir a pinga da nova geração.

Cedo me habituei ao gado e às fazendas.

A mula, moira de trabalho, pachorrenta, com traços de animal nobre, surgia aos meus olhos, como se de um cavalo se tratasse. A crina aveludada erguia a imponência dos puro-sangue, fazia-me passar por um pajem dos tempos medievais, feito cavaleiro do reino.

As ovelhas, companheiras inseparáveis das jornadas de fim de tarde, pelas encostas e nos montes do cabeço do moinho, e nas carvalhas, aproveitavam os momentos de brincadeira com pedras, bugalhos e cavacos, para invadir os terrenos vizinhos, deixando rasto nas couves, favas e demais culturas.

Cíclicas produtoras de leite, a joia das brincadeiras residia na observação dos borregos nas suas traquinices, saltando como cabritos.

Na memória, correm ainda os gatitos, lançados nas acrobacias, quais palhaços no trapézio. Não se contabilizam arranhadelas nos braços.

A Edite já não usava o escorrega, foi pra Lisboa trabalhar, criada de servir, em casa duns senhores ricos. Farta da carroça puxada pela mula, que também puxava a nora da horta, foi descobrir as virtudes da capital.

A Zita, sempre cordata, já tinha ido pra Lisboa. Não tinha muito jeito para as fazendas, e o padrinho arranjou-lhe um colégio de freiras, onde podia esmerar a educação.

O António rumou a outras paragens, conquistando a salto, as terras da cidade luz.

A Justina casou, e ficou tão perto, que via nascer o sol no olival, todos os dias.

O Agostinho e o Manuel cedo seguiram outras vidas por terras africanas, onde Gungunhana tinha feito história. O tio tomou conta deles, pois eram os rapazes mais velhos, e eram filhos de gente pobre.

Pouco a pouco, o sol já não brilhava tanto, e a luz que entrava pelas frestas, outrora resplandecentes, foi fazendo parceria coma s teias.

O sol, cansado de passar no que antes fora o olival, e a vinha nova já não tinha em cima os olhares jovens que a viram nascer, foi murchando. A vinha perdeu o gosto pelo astro rei.

Sem o entusiasmo habitual que marcou uma vida, o cantoneiro também ele, o homem dos sete ofícios, foi-se afeiçoando à nova realidade.

A 4L rumava com mais frequência, até aos subúrbios da capital.

O lado laborioso e empreendedor deu lugar a uma doce ternura, numa tez curtida pelos raios solares, que não passavam pelas frestas da janela.

Talvez seja preciso deixar pra trás uma obra consolidada a pulso, para conquistar um novo bem-estar moral, junto de quem mais se ama.

A Lucinda, mãe de tantos filhos, protegida pela louca paixão do homem de ferro, acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, e a realidade não lhe surgiu estranha. Aliás, percebia-se na sua face, a satisfação sempre que cheirava a cidade.

As emoções, viveu-as à sua maneira.

Aquele mesmo sol que se desvaneceu nas terras da vinha nova, ganhou brilho em solo onde o rei lavrador tinha deixado marcas de sete séculos.

As suas viagens frequentes da corte a Odivelas ficaram famosas pela busca sistemática do investimento cultural, quer pelo seu rasgo poético, além do aconchego carnal que encetava.

Não conheço versos escritos pelo cantoneiro. Não me chegaram prosas embelezadas, escritas pela sua mão. Mas em cada traço, em cada momento, num sorriso catapultado na expressão facial, leio estrofes sem fim, de uma vida carregada de sentimento.

Nasci em Outubro, mês de um limbo letárgico, junto ao equinócio, enquanto o sol já passou o equador, e viaja a caminho do capricórnio, um movimento de declínio.

Tento perceber a verticalidade de uma vida, marcada pelo entusiasmo latente e equilibrado, o sol do equinócio.

Há quem construa a dignidade com muito trabalho, e obediência moral cega aos princípios apregoados.

Outros entendem-na pela resistência às agruras dos imprevistos, correndo sistematicamente atrás do prejuízo.

Será encarada por alguns outros, através da opulência do dinheiro, alicerce da construção do ego.

Percebi ainda, que dignidade pode ser um estádio de consciência, misturando um pouco de tudo.

Cá por mim, gosto da ideia de poder ser pobre, mas não ser ignorante. Posso não ter bens materiais, e não ser parvo, não embarcando na cobardia de me embalar na tendência das maiorias.

Os traços de carater não permitem flutuações.

Ser digno é saber escolher entre o caminho fácil, e o exigente, não contornando os sobressaltos do trajeto.

Por mim, vejo os meus passos marcados pelos traços indeléveis do carater do meu cantoneiro, como a pele que regista o ferro em brasa.

Por isso, pela força motriz que impulsionou em todos os instantes, cada dia é um onze de Março, bem vincado, penetrando na minha pele.

E o sol já não entra pela janela do meu quarto. O dos rapazes fica registado nas memórias.

O meu colchão já não é de camisas de milho.

Hoje o sol põe-se por detrás das amoreiras, ao lado do matagal.

 

LUMAVITO

04/06/2015

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publicado às 23:33

CRIANÇA

por avidarimar, em 01.06.15

Ser criança é ser natural

Sem capa de aparência

É a si próprio ser igual

É não ter qualquer tendência

De submissão a qualquer mal

 

Ser criança é sonhar

Sem limites de dimensão

É voar pra qualquer lugar

Crescer com a ilusão

De ser o único dono do luar

 

Quando voltar a ser criança

Quero dançar solto pela rua

Vou acordar toda a vizinhança

Irei pra lá donde o rio desagua

Aos peixes mostrar a minha dança

 

LUMAVITO

01/06/20015

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publicado às 21:26


Pretendo abordar diversos temas da vida de um país, em claro desespero de sintonia entre governados e governantes. A forma pretende ser a poesia, com mais preocupação pelo conteúdo da mensagem que pela forma de estilo.

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