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Neste terreno inóspito
Cresceram catos
Crivados de espinhos
Auto defesa
No meio agreste
Só eles resistem
Os dromedários cobiçam-nos
Não há flor que suporte
Tamanho rigor
Nem sequer ervas daninhas
Invadem muitos quintais
Mesmo assim
Há quintais que são desertos
Onde o vento fustiga a areia
Modelando as dunas
Ao seu jeito
Quando o vento não sopra
O sol escalda
E estrangula as gargantas sedentas
A pele cansada
Vai resistindo como pode
Neste deserto há um oásis
Onde me abrigo
E rego às escondidas
Os canteiros
De cravos na janela
Rosas encadernadas
E todas floresceram
Nova corrente de uns anos
Uma peste contaminou os quintais
Tal como mosca do oriente
Nos ares uma poeirada
Que nos seca a todos
o anticiclone soprou-a
Do norte de África
E no meu jardim
A terra cansou
O estrume fraquejou
As folhas amarelecem
Neste mundo lusitano
Há um deserto de ideias
As ervas daninhas prosperam
Desaprendemos reinventar
Participação ativa
Nos destinos de nós próprios
A fúria da sobrevivência
Retira lucidez
O fogo do desespero
Consome-nos
No que é mais rico
Dignos participantes
Do futuro dos nossos filhos
Que aqui murchou
E eles partem em debandada
Nos corações calcinados
Em cada jovem que emigra
Seca uma flor no oásis
Só os catos resistem
LUMAVITO
30/06/2015
A musa escava e funde
O alicerce da construção
A parede ergue-se
Tijolo a tijolo
As sílabas da areia
Da água e do cimento
Numa argamassa
Justamente calculada
A inspiração do momento
Em esquadria ou em linha
Os decassílabos da evolução
Fecham espaços
Abrem horizontes
Descrevem sentimentos
Em cada palavra
Um tijolo selado na construção
Sem alma
A parede cresce
Sem resistência
O varão de aço do pilar
Dá-lhe o carater de solidez
A viga mestra da estrofe
Encerra o sentido lírico da vida
O cimento confere o milagre
Do equilíbrio do ser
O poeta é o servente
E o pedreiro do poema
O desalinhado do vigente
É o arrojado e o prudente
É barro do outeiro
Pá betoneira e obreiro
É o ferro e o betão
Telhado e fundação
Arquiteto e engenheiro
É janela ombreira e lintel
É tinta trincha e pincel
Desenhador medidor orçamentista
De todas as profissões
É o primeiro e último da lista
É cofragem de madeira
Deslizante funcional
É sonhador a vida inteira
Pedra arrancada do matagal
É esquiço planta e alçado
É sacada e telha de beirado
É régua talocha fio de prumo
É o mapa em pormenor
De uma vida sem rumo
LUMAVITO
29/06/2015
Para lá da superfície do espelho
Há sempre um ser
A luz e a sombra
São a imagem
Também sentir
As formas são realmente
De um corpo
Estupefacto
Assim mesmo
A barba por fazer
Os dedos tocam a superfície
Sentem o enigma
O cheiro do sangue nas veias
Os olhos esbugalhados
Estarrecido
As arestas e os vértices
Do quarto sem fundo
Como alas dum corredor sem fim
O branco das paredes
Refletido na face enrugada
Os cabelos desalinhados
Nesta natureza fingida
Só as flores de plástico não murcham
Os momentos de uma vida
Feita em bocados
Assim o espelho
Desmaia uma pessoa
E desperta uma angústia
Cravada de um suor
Quente e frio
Sal e vinagre
Ao espelho não se vê o por do sol
É um nevoeiro constante
Descortinar a luz
Só por milagre
LUMAVITO
23/06/2015
Nos dias de hoje
Ser feliz
É nadar em dinheiro
A soldo da rendição
Dos princípios de grau cimeiro
Viver feliz
Hoje em dia
Nesta vida de ilusão
Tem condição de desistir
De ver no olho o aguieiro
Saborear o sumo da vida
Tem alto preço
Não viver do ilusório
Do material acessório
Não ser larápio
De sucesso
Tanta gente que eu conheço
Dinheiro não é pólen nem é sémen
É antes um vento seco
Que sopra forte de frente
Desgasta a pele
Carcome a mente
Não é ovário
Nem trompa de Falópio
É do carater
O hábito do ópio
Um estado de boémia
Que vai criando dependência
Vai crescendo ao microscópio
E explode septicémia
É alma vendida
À desistência da corrida
Do valor que a vida confere
Em troca
Duma paz podre qualquer
LUMAVITO
19/062015
Uma estrada empoeirada
Sol a pino agreste
Uma árvore ensolarada
Uma sombra que se apreste
Vem a calhar
Que nem bomba
Esqueleto esticado
Como quem tomba
E se deixa cair para o lado
Uma breve sorna
Num instante mergulha
Em banho de água morna
Nas nuvens a levitar
Ressona que nem grulha
LUMAVITO
15/06/2015
O gato mal está
Está ali
Faminto
Pelado
Cadavérico
Arrasta-se no muro
Quase desfalecido
Já tinha sido
Animal de estimação
Ultimamente
Perdeu o pelo reluzente
O dono achava-o remeloso
Fez-se à vida de rua
Morreu trucidado
Por um cão vadio
À porta da quinta
Agora o dono diz
Coitado do bicho
Em pequeno era tão brincalhão
A senhora derrama
Lágrimas de crocodilo
E o menino
Fez-lhe um funeral digno
Tão queridos que eles estão
A minha senhora
Não gosta de gatos
Dentro de casa
Por esta minha restrição
O meu gato
Que está por nascer
É bem tratado
Felpudo
Anafado
Tem um guizo ao pescoço
Ronrona à lareira
Afia as unhas
No tapete
Mas não arranha
Tem um bigode
Que faz inveja
Ao barbeiro do meu bairro
Quando as senhoras pilecas
Veem o meu gato
Ficam aborrecidas
Maldito bicho
Sempre a dormir
O estupor do dono
Não se incomoda
E nos tempos de ócio
Brincamos no chão da sala
Com uma bola
E um cordel
Estou tão feliz com ele
Já aprendi a miar
Se me picam
Sem que se note
Arranho
Bem mais que o bicho
LUMAVITO
14/06/2015
É o trilho do elétrico amarelo
Que passa buliçoso
O cortinado da janela
Espreita a calçada
O vagabundo dorme
No banco de jardim
O cobertor é de plástico
E um cartão
Os gatos espreitam o cio
Capto o olhar do transeunte
Turista nórdico encalorado
Num mês que é mais frio
Santa Apolónia está calma
Os comboios descansam da viagem
Ancorados na almofada
A cidade ensonada
Escuta o deslizar do rio
Na manhã de sábado
Cinzento e preguiçoso
Há um ambiente soturno
A pairar
E porque não é dia de trabalho
Os cacilheiros já não correm
Deambulam
Respirando fundo
E porque não gostas do vento
Nem da chuva
Ficaste em casa
Dizes tu
No quentinho
O sábado é pra descansar
Eu vagueio
Sem rota nem relógio
deslizo nas ruas semi desertas
Banho-me
Na pacatez do silêncio
LUMAVITO
13/06/2015
Se algum dia sem aviso
Eu saltar o muro desta cerca
Das pessoas com juízo
Não me sigam mais
Nem me tentem deter
Deixem-me saltar os quintais
Até ao alvorecer
A essa respeitosa gente
Que integra se afigura
Ácido consciente
Deveras sanguessuga
Fala-lhes da minha loucura
E dá-me tempo para a fuga
A minha fábrica de ideias
Carece de sossego secular
Pra escutar a balada do homem comum
Como a brisa que corre branda
Melodicamente de embalar
Em prol de quem debanda
LUMAVITO
12/06/2015
Esperava eu ver coisas
Que me mostrassem coisas novas
Com o tempo que ainda não vivemos
Esse tempo está atrasado
E ainda não aconteceu
Foge-nos entre as mãos
Esse tempo
Incessantemente não temos
Um fim de tarde
Com o sol a esconder-se calmamente
Como se tivéssemos
Todo o tempo do mundo
Contar as estrelas
Penduradas no firmamento
Esperava eu ver coisas
Como a maresia
Que se instala e cola
Nos corpos meio despidos
Enquanto as árvores despontam
Por entre os riachos
Que deslizam na floresta
Esperava eu assistir
Serenamente
Ao teu sorriso
Ao olhar que os pássaros
Esvoaçam de ramo em ramo
E debicam a água do riacho
Esperava eu ver coisas
Com o tempo que ainda não vivemos
E que estupidamente não temos
Para saborear cada momento
Deste tempo tresloucado
Esperava eu que viver o tempo
Fosse uma coisa natural
E em que não houvesse
Sete horas pra levantar
E o levantar
Fosse uma coisa sem hora
E que a função
Não fosse repetir
O que o tempo nos obriga
Esperava eu que as coisas
Pensamentos e ideias
Não fossem um amontoado
De pontos e vírgulas desgarrados
Em que a linguagem
Estivesse nos olhares
E o silêncio fosse
O cumular das emoções
Esperava eu ter tempo
Contigo acertar calmamente
Esperava
De mão dada
Olhar pra trás
E com a nossa linguagem
Dizer que este tempo que já passou
Valeu a pena
E vamos continuar
Esperava eu encontrar coisas
Em que as coisas
São palavras com sentido
E a sua direção
Seja uma viagem permanente
Sem desvios
Nem atropelamentos
Esperava eu ter nas coisas
A estrela polar
Da nossa estrada sinuosa
Sentir o coração sereno e calmo
Sem se deixar embalar no vazio
Dos pesadelos da carne ferida
Rasgada pelos lobos esfaimados
Esperava eu encontrar
Coisas enigmáticas
Esmiuçá-las até à gema do caroço
E plantá-la na terra fértil
Do nosso quintal de emoções
Regá-la com a água
Do teu riacho
Esperava eu ter tempo
De a ver brotar
Como os nossos rebentos
LUMAVITO
08/06/2015
Em cada esquina crepita o silêncio
Pela viela viaja uma lágrima
Solta pelo exército de emoções
Engrossa um mar de tristezas
Corroídas pelo sal do desespero
Oh pátria oh nação
Expurgas todos os líquidos
Que te correm pelo corpo
Definhas as raízes desenterradas
Pelos algozes capeados de veludo
Oh pátria oh nação
A geografia da liberdade
Resume-se a um vale
Em garganta espartilhada
Consumida pelas labaredas do poder
E que apagam a chama dos seus amantes
Oh pátria oh canção
Não deixes de cantar
Um país a desmoronar
O crepúsculo não é só queda
Também é claridade do oriente
Oh canção oh grito de dor
Não te rendas
Subleva-te
Vai de boca em boca
Eleva a tua voz da revolta
Vai mundo fora
Diz aos navios em alto mar
Que os outros secam a esperança
Deste povo estrangulado
Oh canção pauta de música
Entoa os versos feridos do poema
Acompanha a harpa que chora
Puxa pelo violino que geme
Espalha pelos sete cantos da cidade
Que apesar de moribundos
Ainda não morremos
No céu cinzento
Deste mar turbulento
Há gaivotas livres a voar
E os tambores já rufam
Ecoam cada vez mais forte
E troam a reunir
LUMAVITO
06/06/2015
A teu pedido
Numa página escrevi cinco linhas
“Faz-me um poema de uma vida ”
E a inspiração esgotou-se cedo
Desalento
O teu olhar perdido sugeriu em mim
O reviver de cada momento
Os temas e as ideias
Que juntos construímos
De alto a baixo
Sem esquecer vereda
O teu corpo sulcado
De palavras desenhadas
A pincel de seda
As silabas pronunciadas
Com o vigor do prazer
Os sentidos elevados ao máximo
O rubor
Das curvas suaves do ser
Um esplendor
Os cálculos simétricos
Do firme pisar dos teus pés
A candura que te trespassa
Disseminada de lés a lés
Seios robustos
Montes gémeos
Ornamentos atuais
Antes
Fontes inesgotáveis
Venéreos locais
Um corpo de uma vida
Uma vontade sempre acrescida
De calcorrear caminho
Num girar constante
Como velas de moinho
Um fogo permanente
O fervilhar aceso das emoções
O orgasmo quente delirante
Na justa dimensão do teorema
E no local onde os sonhos acontecem
Despontou o poema
LUMAVITO
05/06/2015
O sol nasce do lado do olival.
A estrada empedrada acompanha o movimento do sol.
Da janela do quarto dos rapazes, se queremos ver o sol, não podemos abrir o estore, nem correr as persianas.
Na janela do quarto dos rapazes, os vidros são de madeira, ressequida pelo tempo.
Do lado do olival, havia uma figueira, a figueira grande, tão grande que nos roubava o sol que entrava pelas frestas da madeira.
Por roubar o sol que nascia do lado do olival, o meu pai cortou a figueira grande.
Para que não perdêssemos a memória da figueira que tapava o sol, o meu pai deixou-lhe o filho primogénito.
O eleito cresceu do lado do sol, que irrompe todos os dias, sendo avistado apenas pelas frestas do quarto de fora, o quarto dos rapazes.
Eu nasci em Outubro, o mês do limbo, em que a faina agrícola não tem uma tarefa específica.
Os figos estão apanhados. Alguns ainda secam na eira.
A vindima está feita, e o mosto já fermenta. Em breve provar-se-á a pinga.
Aguarda-se que a azeitona amadureça.
Nesse mês, o sol nascia exatamente pelas frestas da janela do quarto de fora.
Antes que o sol nascesse, o velho despertador tocava no quarto dos meus pais, às cinco e um quarto.
E o António, dorminhoco como era, nada ouvia, ou pelo menos não dava sinal.
Eu registava o som, impelia um movimento de rotação sobre mim, e adormecia, ancorado nas novidades de cada dia.
Enquanto eu, sonolento, ainda dormitava, o meu pai cavava a vinha, a seguir ao olival.
Rigorosamente às seis e trinta e cinco, sentava-me mecanicamente no colchão de camisas de milho, e aceitava o covilhete das sopas de café com leite, sempre à mesma temperatura. Enquanto fazia o almoço para levar para o cantão, o meu pai brindava-me com o pequeno-almoço.
O António, esse, dormitava.
Levantava-me da cama de ferro, que tinha um colchão cheio, bem atestado de camisas de milho. A tecnologia da palha de centeio já tinha ficado para trás.
Na estrada empedrada, passavam alguns carros por dia. Pelo roncar de cada motor, poder-se-ia decifrar o abastado que passava.
A estrada empedrada que nos conduzia ao resto do mundo era a mesma que ligava à estrada de alcatrão, onde o meu pai tratava do cantão.
As giestas, os ciprestes, as curvas e as valetas, o grau de inclinação na contracurva, a estatística do trânsito, eram disciplinas na faculdade que o cantoneiro frequentava diariamente.
Em todos os finais de tarde, a bicicleta de três mudanças surgia imponente na curva junto à escola, a minha escola, e a bicicleta do meu pai reluzia, mesmo sem o reflexo do sol, que todos os finais de tarde, escondia-se por detrás da serra de Aire.
Nesse tempo, tudo era calmo e certo, ou, pelo menos, nada de anormal se passava. As palavras mais soletradas formavam um léxico reduzido.
À pacatez, juntavam-se a modéstia e a humildade, sempre apoiadas na honestidade.
Caridade era um vocábulo recorrente, acompanhada da inseparável seriedade. A parca cultura e desconhecimento do mundo não era motivo de vergonha.
Valores morais não faltavam. Merda era termo banido da linguagem em sociedade, e só pronunciada às escondidas. Graçolas surgiam repetidas, como chavões aplicados em qualquer enquadramento.
Os sermões do prior eram o mar em que os espíritos navegavam, quase que submersos, tal a carga que transportavam.
Aparentemente, tudo era pacífico.
Aos poucos, o órfão da figueira grande tornou-se a figura esguia, a figueira nova, alta, porte altivo, e era a pista encantada do escorrega.
Aos poucos, a bicicleta reluzente deu lugar à Zundap, também ela de três velocidades.
O olival foi dando lugar à vinha nova, que acrescentava a velha vinha. Há que garantir a pinga da nova geração.
Cedo me habituei ao gado e às fazendas.
A mula, moira de trabalho, pachorrenta, com traços de animal nobre, surgia aos meus olhos, como se de um cavalo se tratasse. A crina aveludada erguia a imponência dos puro-sangue, fazia-me passar por um pajem dos tempos medievais, feito cavaleiro do reino.
As ovelhas, companheiras inseparáveis das jornadas de fim de tarde, pelas encostas e nos montes do cabeço do moinho, e nas carvalhas, aproveitavam os momentos de brincadeira com pedras, bugalhos e cavacos, para invadir os terrenos vizinhos, deixando rasto nas couves, favas e demais culturas.
Cíclicas produtoras de leite, a joia das brincadeiras residia na observação dos borregos nas suas traquinices, saltando como cabritos.
Na memória, correm ainda os gatitos, lançados nas acrobacias, quais palhaços no trapézio. Não se contabilizam arranhadelas nos braços.
A Edite já não usava o escorrega, foi pra Lisboa trabalhar, criada de servir, em casa duns senhores ricos. Farta da carroça puxada pela mula, que também puxava a nora da horta, foi descobrir as virtudes da capital.
A Zita, sempre cordata, já tinha ido pra Lisboa. Não tinha muito jeito para as fazendas, e o padrinho arranjou-lhe um colégio de freiras, onde podia esmerar a educação.
O António rumou a outras paragens, conquistando a salto, as terras da cidade luz.
A Justina casou, e ficou tão perto, que via nascer o sol no olival, todos os dias.
O Agostinho e o Manuel cedo seguiram outras vidas por terras africanas, onde Gungunhana tinha feito história. O tio tomou conta deles, pois eram os rapazes mais velhos, e eram filhos de gente pobre.
Pouco a pouco, o sol já não brilhava tanto, e a luz que entrava pelas frestas, outrora resplandecentes, foi fazendo parceria coma s teias.
O sol, cansado de passar no que antes fora o olival, e a vinha nova já não tinha em cima os olhares jovens que a viram nascer, foi murchando. A vinha perdeu o gosto pelo astro rei.
Sem o entusiasmo habitual que marcou uma vida, o cantoneiro também ele, o homem dos sete ofícios, foi-se afeiçoando à nova realidade.
A 4L rumava com mais frequência, até aos subúrbios da capital.
O lado laborioso e empreendedor deu lugar a uma doce ternura, numa tez curtida pelos raios solares, que não passavam pelas frestas da janela.
Talvez seja preciso deixar pra trás uma obra consolidada a pulso, para conquistar um novo bem-estar moral, junto de quem mais se ama.
A Lucinda, mãe de tantos filhos, protegida pela louca paixão do homem de ferro, acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, e a realidade não lhe surgiu estranha. Aliás, percebia-se na sua face, a satisfação sempre que cheirava a cidade.
As emoções, viveu-as à sua maneira.
Aquele mesmo sol que se desvaneceu nas terras da vinha nova, ganhou brilho em solo onde o rei lavrador tinha deixado marcas de sete séculos.
As suas viagens frequentes da corte a Odivelas ficaram famosas pela busca sistemática do investimento cultural, quer pelo seu rasgo poético, além do aconchego carnal que encetava.
Não conheço versos escritos pelo cantoneiro. Não me chegaram prosas embelezadas, escritas pela sua mão. Mas em cada traço, em cada momento, num sorriso catapultado na expressão facial, leio estrofes sem fim, de uma vida carregada de sentimento.
Nasci em Outubro, mês de um limbo letárgico, junto ao equinócio, enquanto o sol já passou o equador, e viaja a caminho do capricórnio, um movimento de declínio.
Tento perceber a verticalidade de uma vida, marcada pelo entusiasmo latente e equilibrado, o sol do equinócio.
Há quem construa a dignidade com muito trabalho, e obediência moral cega aos princípios apregoados.
Outros entendem-na pela resistência às agruras dos imprevistos, correndo sistematicamente atrás do prejuízo.
Será encarada por alguns outros, através da opulência do dinheiro, alicerce da construção do ego.
Percebi ainda, que dignidade pode ser um estádio de consciência, misturando um pouco de tudo.
Cá por mim, gosto da ideia de poder ser pobre, mas não ser ignorante. Posso não ter bens materiais, e não ser parvo, não embarcando na cobardia de me embalar na tendência das maiorias.
Os traços de carater não permitem flutuações.
Ser digno é saber escolher entre o caminho fácil, e o exigente, não contornando os sobressaltos do trajeto.
Por mim, vejo os meus passos marcados pelos traços indeléveis do carater do meu cantoneiro, como a pele que regista o ferro em brasa.
Por isso, pela força motriz que impulsionou em todos os instantes, cada dia é um onze de Março, bem vincado, penetrando na minha pele.
E o sol já não entra pela janela do meu quarto. O dos rapazes fica registado nas memórias.
O meu colchão já não é de camisas de milho.
Hoje o sol põe-se por detrás das amoreiras, ao lado do matagal.
LUMAVITO
04/06/2015
Ser criança é ser natural
Sem capa de aparência
É a si próprio ser igual
É não ter qualquer tendência
De submissão a qualquer mal
Ser criança é sonhar
Sem limites de dimensão
É voar pra qualquer lugar
Crescer com a ilusão
De ser o único dono do luar
Quando voltar a ser criança
Quero dançar solto pela rua
Vou acordar toda a vizinhança
Irei pra lá donde o rio desagua
Aos peixes mostrar a minha dança
LUMAVITO
01/06/20015