Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
OU MAIS UM EVANGELHO
Em tempo de recolhimento
Urge elevar as nossas preces
E fazê-las chegar ao céu
Ergo o olhar
E com estrondo ensurdecedor
Vejo passar um A 320
Carregadinho de tanta gente
Esses sim
Estão bem mais perto dele
Ouvem o sermão
De S Passos aos seus discípulos
Um texto lindo
Em português vernáculo escorreito
Pregado no púlpito de S Bento
Não é preciso programa
E corre de improviso
Importa manter as hostes
Com motivo
E mobilizadas ao primeiro aviso
Por cá
As minhas orações
Não abrangem liturgia tão refinada
E a divina inspiração não me invade
Chego até a ser tentado
A recorrer a “pais-nossos bravos”
Dos que
Quando a exposição é tanta
O desgaste acentuado
E a paciência se esgota
Em vez de vapores suaves imaculados
Elevam-se densas nuvens
De um fumo escuro
Impregnado de partículas suspensas
Que são libertadas
E contribuem para a destruição
Da camada do ozono
Noutros momentos
Sinto necessidade de me confessar
E declamo o que a consciência
Maltratada mas firme
Me impele a dizer
Frente à grade do confessionário
Ao representante dele
“Tive vontade
Muita vontade mesmo
Cheguei a juntar um arsenal bélico
Conjeturei todo o plano
De maltratar os acólitos da Buenos Aires
E de linchar alguns do Caldas
É certo contive-me
Faltou-me a coragem
Mas isso passou-me por esta cabeça”
Por detrás da grade
Daquele breu tenebroso
Rasgando o silêncio assustador
Brotou uma voz grossa
Tipo trator a lavrar a terra
Lenta e medida
“Ora
Ora
Ora bem
Pois é Irmão
As tentações são muitas
Os perigos imensos
Mas não lhes podemos ceder espaço
Devemos ser mais fortes
Devemos essa obediência
Ao nosso ser maior
Magnânimo
Que está lá em cima
E eu
Seu representante
Neste reino terreno
Eu próprio
Senti o chamamento arrebatador
De os lixar
Aos mesmos que tu
E alguns
Ficaram lixados comigo
Irmão
Em nome da humildade
Reconhecendo a falta de eficácia
Ou se mata ou se morre
Por não teres seguido
O que te ditou a consciência
Até ao que ela te obrigava
Vais oferecer uma vela
Da tua altura
À padroeira da freguesia
A senhora dos entalados”
Confissão feita
Sentença lida
Penitência por cumprir
O cheiro da cera ardida
Dá-me comichões graves nas narinas
E vê-la arder acima do meu nariz
Arrepia-me
E é natural que me queime as pestanas
Em vez disso
Proponho-me sofrer um verdadeiro vexame
Importa ouvir
O que o prior da capela de S Bento
Inflige nos crentes indefesos
Estabeleço ligação através
Da interioridade espiritual
E a chamada
De valor acrescentado
Estabelece o diálogo
De surdos
Sem quaisquer rodeios
A cândida voz gravada
“Está a ligar para o gabinete do omnipotente
Mais que tudo
Residente de S Bento”
Ligeira pausa
Seguida dum menos ligeiro ruído
De quem masca umas pevides
E pedacinhos de amendoins
Que sobraram entre dentes
Percebendo-se o escorrer
Turbulenta queda garganta abaixo
Demora a engolir
“Decerto que é para continuar
A senda do emagrecimento
Iniciada em dois mil e onze
Importa acreditar
Não há outro caminho
É preciso confiança
Se quiser melhor
Vá trabalhar pró Canadá
Ou pra França”
Como é meu timbre
E não gostando do responso
Sem nada lhe ter perguntado
Já fora de mim
Em tom irritado
Respondi
Que aquela consciência má
Daqui se vá
E que vá trabalhar pra Massamá
Ou se achar que ainda é perto
Vá a nado
E atravesse o canal do Panamá
E já do outro lado
Desça rápido o Pacífico
Passe ao largo da costa do Chile
Mais abaixo
Quilómetros mais de quatro mil
Se refresque no Antártico
De braços abertos
Por lá permaneça
Sem que nada aconteça
Verticalmente estático
Não estava á espera
Não fora avisado
Só agora entendi
Pensava eu de quarenta dias
É uma quaresma de quatro anos
Não há penitência que nos habilite
Definhados pelo jejum
Sulcos sangrados da abstinência
Já não tenho mais paciência
Crucificados é de mais
Estamos todos em morte lenta
Nunca mais chega a ressurreição
E o Judas do irrevogável
O patrono das causas perdidas
Ainda não se enforcou
Só se o Mateus se enganou
Aguarda a madrugada
Perto do jardim das oliveiras
Por entre perdidos cavacos
Aí próximo
No templo de Belém
Jaz moribundo
Um Pilatos
Não larga a bacia das mãos
Ora assobiando pró lado
Ora pedindo que nos juntemos em comunhão
Que este reino que ele quer divino
Bem precisa
Governo e oposição
Para que a sua ceita
Se perpetue no poder
Mesmo que ele apodreça
A olhar o Tejo
Agarrado à cabeça
Mas julgo estarmos
No advento da sua saída
Há um espirito santo a pairar
Que me diz que talvez
Lá por alturas do mês três
Deste próximo ano
Ele se evaporará
Subindo ao céu
Em rarefação
E perpetuar-se-á no vazio
Pelo eclipse total e absoluto
Desaparecendo de vez
E neste mundo agora de trevas
Para sempre brilhará
Nova luz em formação
Qual choque de cometas
Em pleno jardim do rato
Invoquemos
E demos graças ao constitucional
Por não permitirem o estrago
Com a TSU
Imploremos a todos os votantes
Que não se deixem embalar
Na treta do superior interesse da nação
Intercedo ainda
Junto do altíssimo
Para que esta mesma nação
Deixe de ser mera corja
Se quiserem
Meia dúzia de iluminados
Na detenção de todos os bens terrenos
Pois essa coisa de haver um só
São quatro ou cinco
Donos disto tudo
E que esse tudo
Mas não é tudinho
Passe prás mãos da população
Já que
Segundo nos rezam
Somos todos filhos do mesmo pai
Acho estranho mas tá bem
No fervor tão elevado das minhas preces
Junto a necessidade premente
De utilizar todo o ferodo do mundo
Para travar a loucura das privatizações
Antes que cheguem as eleições
Não posso esquecer nas minhas orações
O pedido ao ser celestial
Para que os políticos da república
Não sejam mero sucedâneo
E o perpetuar dos mesmos clãs
Ao longo de séculos
Mais parecendo a monarquia
Vivendo do poder dinástico
Eu sei senhor
Que oração já vai longa
E já estás farto de me ouvir
E a pedir
Nunca ninguém tirou o pé da lama
Eu sei senhor
Que já parece uma ladainha
Com TE-DEUM e missa cantarolada
Ao som das quatro estações
Vivaldi em outras versões
E que recebes pedidos de todos os lados
Mas também sei
senhor
Que tu ajudas os mais aflitos
E tens presente
Uma pitada de justiça
Para quem mais precisa
Mas não de quem mais grita
Senhor
Como vedes
Não vos peço nada de material
Palpável
É tudo da mais pura espiritualidade
A começar pela reformazita
Bem jeitosa
Vinha mesmo a calhar
Bendito sejais vós
Que eu cá me fico
Aguardando a preferência dos teus favores
Tu
Ser omnipotente
O criador
Autor de um mundo perfeito
Os humanos é que o estragam
Com a tua infinita sabedoria
Puseste o teu filho Jorge em Benfica
O irmão dele é que não gostou muito
Da brincadeira
Por causa dos outros foi crucificado
Andou-se ele a matar
Em nome do pai
Para agora o Jorge
Ter tudo facilitado
E ser ainda o preferido
Até em Alvalade
Eu dou graças a ti
Pois foi claramente
Obra tua
A conquista do bi campeonato
E também sei
Sinto-o
Que vais dar uma ajudinha
Na conquista da taça da liga
Tu és o justo
Sabeis bem
Porque falo destas coisas
O futebol é o ópio do povo
Mas apenas para consumo interno
Já que temos os cofres vazios
Não
Não estranhes a expressão
Não é só de espírito forte
Que a vida humilde se faz
Também dá jeito alguma comida
Já agora uma pinguita
E se houver qualquer coisita
Que facilmente nos leve às nuvens
A alma sente-se bem
Tu próprio
Pelos menos Contaram-me
Que também tens um ligeiro vicio
E eu não quero acreditar que o seja
Disseram-me que tens que meter o dedo
Em todo lado
Vá-se lá saber porquê
Eu acho que se trata mais de um hábito
Adquirido com o passar dos tempos
E lá que é capaz de resolver
algumas carências
Lá isso é capaz
E uma mulher faz muita falta
Sabeis melhor que ninguém
Que este povo
Na sua santa
E estúpida ignorância
Revendo-se nos exemplos de sucesso
Dos heróis do pontapé na bola
Atingem o regozijo
E o orgasmo mental
Como se eles próprios
Heróis fossem
Tens junto a ti
O primeiro grande exemplo
Sim…
Sim…
Não vale a pena
Esbugalhares os olhos de espanto
Sim o Eusébio da Silva
Viajou diretamente da catedral
Para o espaço celestial
em Janeiro do passado ano
já lhe reservaram uma suite
ao lado da Amália
já que ele gostava deste fado
Para não falar dos tremoços
O quê?
Não está contigo?
Ele que tanto se esforçou
Tantas vezes que jogou injetado
E tu não o acolheste
No teu reino?
…
Ele bebia?
Bem o avisaram para não se meter com o escocês
Más companhias… é o que dá
Mesmo assim
Merecia um pouco mais
E tu bem o podias ter ajudado
Repara
Aquele outro prodígio
O outro que já foi o melhor
Conhecido mundialmente
Um predestinado dos cromos
Aquele que concorreu à fífia
Pois… esse mesmo
O fruto da figueira
Entrou noutras galáxias
Corre mundo
Até foi visto uma manhã
No parque dos tagus
Ou lá o que é
Oremos para que ele se mantenha
Sempre certinho
No bom caminho
E em belas companhias
…
Não… não…
Esse está preso
Mas é inocente
E lá por se terem encontrado
O que importa pró caso?
Só más línguas
O quê?
Não quero acreditar
Estás mesmo feitinho com os outros
São todos o mesmo
E eu a pensar
Que ainda se podia confiar em alguém
Até tu…
Pronto…
Vamos mudar de tema
Pois esta conversa não ajuda
Eu sei
Tu és o justo
Mas também és o artista
As tuas mãos são perfeitas
E hábeis
Fizeste o céu azul cintilante
Onde as nuvens se espraiam
Levando a água
A quem precisa
Eu sei
Não é da tua responsabilidade
Algumas enxurradas
Inundações
Que acontecem
Aliás não foste tu que criaste
O sistema de descarga
Do autoclismo
Fizeste o mar
Onde os grandes navios se deslocam
Levando comida a quem precisa
Os naufrágios não são obra tua
Pois não és tu que os pilotas
Fizeste o sol que nos ilumina
E é a fonte de vida
Da nossa galáxia
Não podes ser responsabilizado
Pelos melanomas
Cada vez mais frequentes
Os parvos e os gentios
É que se expõem demais
Criaste o homem à tua imagem
A partir do barro
Qual José Franco
Em Mafra
Mas é aqui que se adensa
Uma dúvida
Não sei se é um erro de conceção
Ou se se trata de mais uma falha humana
Não investiguei o necessário
Para que pudesse perceber este facto
De todos os povos por ti criados
E tu soubeste colocar-nos
Junto à praia
Mas nestes
A testosterona não mora
No local que é comum
Nós sabemos qual
Não… não…
Não é esse
Está sempre na ponta da língua
Só depois do ato
É que a engole
Tás a var a figura dos meninos
Ajuda-me a perceber
Esta existência
Oremos por eles
Pois deste modo
A natalidade diminuirá
Só tu concederás
A nossa redenção
LUMAVITO
28/05/2015
Há coisas que morrem
E mesmo assim matam
Coisa que se sentem
E não têm vida própria
Há coisas que são vida
E ressuscitam
Tantas coisas sentimentos
Mortos pela vida
Há vida em coisas
Que vertem lágrimas e não choram
E a minha dor
É sentir as coisas
que não têm vida
A morte é uma coisa
Uma agonia prolongada
Que me dói
Morrendo ainda com vida
Dói-me esta coisa
De viver sem sentir
Que a vida nos esgota
E a coisa tempo passa
Mas não acaba
A morte também não
Vai matando todos os dias
Mais um pouco
No limiar da coisa incógnita
LUMAVITO
28/05/2015
Do profundo da escuridão
Almejo a luz que nasce cedo
Do horizonte do mar
Rasgo o azul do céu
Por entre o arvoredo
Encontro o que me seduz
E deixo pra trás
Tudo o que se desvaneceu
E é no sossego da noite
Faço com que o sentido vadio se afoite
E o sonho entre no apogeu
LUMAVITO
23/5/2015
Eu quero ser pardal em viagem
Fazer das asas o meu batel
Ao sabor das águas sem paragem
Qual geringonça de papel
Quero ver o mundo dos telhados
Poisar em todas as muralhas
Comer o pão aos bocados
Saciar-me dos restos em migalhas
Quero pairar livre nas montanhas
Girar por vales cavados sem destino
Livrar-me das pessoas enfadonhas
E com horizonte pequenino
Quero ser gaivota junto ao mar
Assistir à faina do pescador
Ser águia pujante ao madrugar
E ser falcão imponente ao sol-pôr
Quero ser milhafre a planar
Ser coruja à luz da lua
Quero ser livre e voar
E a minha casa ser a rua
Quero ser cotovia e cantar
As melodias da liberdade
Quero ser intérprete no ar
Dos poemas da realidade
Quero ser simples no ser
Como o pássaro é a voar
Assisti aos filhos a crescer
E já se deslocam no ar
Quero ser um pássaro clandestino
Invadir o espaço aéreo da razão
Fazer da vida o nosso hino
Em completa libertação
LUMAVITO
23/05/2015
Não à guerra
Não há guerra
Já não há guerra no Ultramar
E Timor já tem treze anos
Mas todos os dias nos fazem uma guerrilha
Despudorada lenta encapotada
Sem direito a trincheiras
Essas estão do outro lado
São barricadas ocultas
De onde são lançados mísseis ideológicos
Atingem-nos com o estrondo destruidor
Do desgaste quotidiano
Em todos os noticiários
Os coletes de força apertados
As facas estão afiadas
Os cutelos apontados
Disfarçados no corredor do matadouro
Foi privatizado
Trabalha vinte e quatro horas por dia
E os bois sangram
As vacas mugidas não dão leite
Vertem uma solução aquosa
Com coágulos de sangue
Os olhos dos cavalos brilham
Do sangue derramado pela esclerótica
As ovelhas berram sangrando
No ruminar ácido do bolo
As cabras parideiras
Têm o amojo vazio enrugado
Os bodes perderam os tomates
Rebentaram de tão entalados
E ainda não entraram no corredor
Vão a caminho
Os carniceiros andam à solta
Nós somos o gado a abater
Fujam
Fujam todos
E não se deixem prender pelos cornos
Berrem ladrem mordam
Deem-lhes coices
Zurrem e praguejem
Mas não cacarejem
De tanto cacarejar
É que eles nos acham galinhas tontas
E só os galos os têm junto à garganta
Cantam muito e fazem pouco
Esgravatam o chão
E os outros querem-nos calar o bico
Mesmo antes de nos estriparem
Cheira a passos de coelhos engravatados
reais pragas em ebulição
Às paulinas portas que são das tocas
Que são palácios
Tresanda a sangue podre do poder
Contaminado pela bactéria dos mercados
Que são voláteis
Cheira a vinte e oito de Maio
E a Santa Comba
E à pútrida matilha de lobos esfaimados
De vingança dos traços
que a história escreveu
Resta-nos fugir para as montanhas
Comer a erva que cresce no mato
Beber a água que resta no leito seco do riacho
Resta-nos resistir bem do alto
Até que apareça
Um presidente que nos ouça
LUMAVITO
20/05/2015
OU MERCADO DOS ESPERTOS
Os bons bocados não são de quem os faz
Mas sim de quem os come
Se os olhas fixamente
E te perdes no tempo
Não suportas tanta fome
Entrar no jogo da economia
É verter mais sangue pela pele
Criando uma anemia
O pão que alimenta a carne
Impregnado em gotas de fel
O bolo desenformado do mercado
É do gérmen da semente
O tributo inestimável
Guardada ao passar do arado
Faz parecer bem agradável
Para saboreares uma fatia
Além dos ovos açúcar e farinha
Juntar-lhe-ás fermento
O resto é contributo
Saída que se adivinha
Para o patrão o trabalho enaltece
Apenas paga os juros
Do favor do teu emprego
Vais ficar em apuros
O capital nunca amortece
Ainda assim se algum dia
Tentares abater o capital
Nadando braço a braço
Dás o estoiro de cansaço
Antes de atingir o final
Nunca saldarás a dívida
Pois o perfil de esperto
Só alguns são bafejados
Não atinge todos os lados
Com o efeito do tacho certo
O trabalho é como tudo
Se feito diversas vezes
Mais não passa que de vício
Toma o ciclo da rotina
Chamam-lhe os ossos do ofício
Não queiras ser dependente
Da rotina do trabalho
É uma questão de saúde
E para tal corrosiva doença
Não há metadona que ajude
O curso com mais saída
Neste novo mercado
É o bacharelato em farejo
Quem o tem cheira o teu dinheiro
E não entras no festejo
Se virtude é trabalhar
E isso não dá estatuto
Vende gravata e jaquetão
À porta da Assembleia
Essa farpela remedeia
O jeito do charlatão
No dia em que lá entrares
E consigas botar discurso
Défice dívida PIB inflação
Serás o senhor sabichão
Muitas pancadinhas nas costas
E um lugar na administração
Se não usas de esperteza
Em vez de ires à caça
Mais não és do que presa
Não te armes em pateta
Enterrado entre o mato
Com postura de poeta
LUMAVITO
19/05/2015
Apetece-me vaguear pela cidade
Pisar as pedras da calçada
Que serpenteia os nacos de construção
Que se empilham nas margens desta rua
Como se a seguissem até ao cruzamento
Como se o curso da água que corre
Pelos recantos e baixios da faixa
Que nada tem pelo meio da vereda
Se esvaíssem por ali
E segue até ao cais que espera
Impaciente pelas novas
Que chegam das ruas e das estradas
E dos campos
Todos eles para trás desta rua
Que chega a este cais
E que o admira pela frente
Envolta pela grande praça
Que admira espantada
E de olho arregalado
A lisura e secura do líquido em estado horizontal
Que parece que está,
Mas vai deslizando por ali abaixo
Sem que os olhos distraídos que por ali vagueiam
Se apercebam que o que está amorfo
E indiferente aos seus olhos
Segue o curso e o ritmo próprio
Do que não quer ficar por ali.
Mexe também indiferente
À presença de quem está
E que por ali vagueia, e fica
E que vai deixando um odor,
Marca de presença de vida
Animal, vegetal
No ar do reino vegetal, animal
E imaterial de quem fica
E que pensa
Deixando rasto por ali
E por todos os lados por onde
Passa e permanece.
Atirando o olhar para o outro lado do cais
A água passa imperturbável
Ao odor de quem não acompanha o seu passar
Noutra senda, noutro sentir corrente
Com outro afazer
Que não tem a ver com a azáfama dos humanos
E procura outra dimensão que não aquela
De quem lhe aperta a garganta
Entre margens que aparentam aveludadas
E o deixam escapar por entre os seus lábios
Húmidos e embevecidos
Por sentirem aquela humidade
De gente tão distinta como aquela
Que escorre por ali a fora
Como se fossem naturalmente lubrificadas
Para que o líquido escorra naturalmente
Com a paragem marcada para reabastecimento
E viragem para outras paragens.
Olho o esforço despendido
Por todas estas forças
Convergentes, mas altamente dissonantes
Nos interesses auto parcelares
Porque esta existência é marcada por instantes próprios
E que chocam facilmente com os interesses coletivos
Que são o polo oposto com o ego umbilical
E atiram com que facilidade
Para o egoísmo exacerbado
Do que é estupidamente marca pessoal
E rasto de fedor incontrolável
Inalado no ar de todos os sere s que o são
E dos que o tentam ser
Seres animados pela energia reativa
Da inveja e do asco
E que, desmontadas, não são mais que bosta petrificada
E que se arrasta por estas ruas que parecem pessoas de bem
e benévolas
Estupefactas pela admiração que lhes dedicam outros seres,
Esses sim, seres diferentes, indiferenciados
Que não têm notoriedade
Nem interesse por se sentirem diferentes
E amados, e arrebatados por outros valores
Que se podem apresentar pela dignidade
De aparecer, e de estar
Por que estar também tem saber
E o saber também se instala
E conquista
Em que se anota com dificuldade de estar, e de ser
Mas continuam a teimar em respirar pela narina
E a olhar pelos olhos esbugalhados
Da admiração espantada
E desenfreada.
Gostaria de fazer uma viagem por dentro de todos estes olhos
que olham por dentro. E miram por fora
Vão e veem, sobem e descem
E despem o que é despido
E revestem tudo o que é movido
Revestem com desprezo e indiferença
O que é diferente
E o que é naturalmente parvo e estúpido
Pois que sendo estúpido se torna naturalmente aceitável
Pela hoste que é raça de entendimento animal
E por isso se torna acontecimento banal
E o que é banal é socialmente aceitável
Pelo que de grau de rigor
Sendo aceitável, não é relevante
Pois o aceitável é concordância fraca
Básica e repugnante
E pelo cais que desliza da andança
Passa o produto das sociedades
E o suor das pessoas
O dinheiro dos agiotas
O esvoaçar dos pombos
E os ovos moles das gaivotas
Sem que para tal tenha feito
Qualquer esforço de rimar
Os navios acostam impávidos
Aos movimentos dos circulantes
Acomodam-se sempre do mesmo lado da colina
E do mesmo lado dos mesmos
Pois a postura é contínua, repetida
E o cais apara o golpe da batida
Sem disso se queixar
Sem anotar a dor infligida
O escorrido do piso
Não é pó não é vapor
Tresanda a ácido
A mijo
Nas pedras maltratadas
Do tráfego dos artigos escondidos
Entalados no contentor
É maldade do humano estupor
Cama aberta sem almofadas
Água branca sem sabor
Escorridas das encostas
Das ideias corcundas anafadas
Registo o som do silêncio
Entranhado no borburinho das ideias
Com o timbre da confusão
Gerada no esperma da fantasia
Em uníssono com as vogais da elegância
A voz desgarrada da ilusão
É nada que tudo porfia
E em tudo o que nada alcança
Chora lágrimas de cortiça
Granulado de vinho e sangue
Do porco acabado de morrer
Misturado com sal
Beleza retocada e postiça
Vapor de inspiração
E languida capacidade de resignação
Mas o rio
O rio corre sempre indiferente
Sem olhar quem passa
nem por quem passa
E segue o seu destino
Alheio às máquinas e geringonças
Que descarregam os navios atracados
E que trazem as especiarias de plástico
Vindas do oriente
E que pululam nas lojas
Que estão abertas todos os dias
Durante cinco anos
Até que se esgote a isenção fiscal
Mas é assim que se vive
Ao longo das margens deste rio
Que corre sem cessar
Impávido às quotas leiteiras
E à imposições do limite de produção
Da união europeia
Em troca dos milhões e milhões
Que entraram no bolso de meia dúzia
E o restante dos dez milhões
Está a pagar as favas
E não as come
Para que o curso do rio não se altere
E o rio corra sempre altivo
e indiferente ao desemprego
e à emigração
à pobreza cada vez mais acentuada
à dor de alma instalada pela vergonha
De se sentir mutilado na cidadania
Mero número sem contar pra nada
E arrumado na prateleira da dignidade
E o rio
O rio não para
E segue o curso de tantas vidas
Tantas ilusões que se criaram
As esperanças que pairaram por cima das cabeças dos números
Os números que foram relegados para sucessão numérica
Mergulharam na desilusão
E assim se mantém no curso deste destino fadado
De correr sempre para o mesmo lado
Indiferente ao curso dos números.
LUMAVITO
10/05/2015
À hora da sesta
Os cães ladram na rua
Certo não é do sol que escalda
Nem tão pouco da luz da lua
Um gato foge apressado
Pelos pináculos do muro
Forma um salto pró outro lado
Desaparece mais á frente
Num poiso bem mais seguro
É uma paródia canina
De contentes abanam o rabo
Mais um da raça felina
Já se foi dali acossado
Bem pra lá da colina
Porque estão sem trela
Vão ao cheiro na cadela
Pois bem sabe o cão vadio
Que a cadela anda com o cio
LUMAVITO
10/05/2015
Farto de cavar a terra
A enxada era pesada
Um dia partiu
Foi a madrinha
Arranjou-lhe colocação
Foi ser padeiro
No mar alto
Dia e noite
Noite e dia
Sempre o forno
O forno sempre quente
O pão saía crestado
A escaldar
A tripulação trabalhava
Dia e noite
E comia pão quente
Todos os dias
Nas poucas horas livres
O padeiro dormia
No porão junto ao forno
Falava com o cozinheiro
E com o homem que comandava
A sala das máquinas
Eles comiam a solidão
Do fundo do mar alto
Ao som da zoeira das máquinas
O navio pouco parava
Dava volta ao mundo
Às vezes atracava no cais de Alcântara
Às vezes
O padeiro via a mulher
Que ficava em terra
Seca de esperar
Às vezes dormia com ela
E lacrimejava
Sedento de ficar
Voltou um dia
À terra que tinha a vinha
E tinha a mulher que esperava
E tinha as filhas
Já crescidas e maduras
Mas já não cavou mais
Jogava à bola de pau
À malha de ferro
E ao bicho
Atracava ao balcão
Da tasca do Libério
Empinava uns copos
Matava o bicho
A meio dum copo saboreado
Estalava a língua
E sussurrava
“Olha olha escuta…
Ouve o que o silêncio diz
As estrelas estão suspensas no céu
A ouvir as cigarras no silêncio
E a lua está brilhante
É um pão árabe perfeito”
Afogou a solidão
Levantava ferro à hora da ceia
A cirrose bebeu com ele
E a mulher do padeiro
Todos os dias
De tanto esperar
Ficou seca
O padeiro do mar alto
Não ficou
As filhas
Essas…
Têm fotos do pai
Na proa do navio ancorado
Bebem saudade
Do embarcadiço
Que encalhou junto à costa
LUMAVITO
06/05/2015
Na falência dos dias de Abril
Ruidosa irrompe a passarada
Os campos vestem cor primaveril
Nos recantos desponta a vida
Em cada botão uma rosa inventada
Neste Abril que já foi quente
Resta agora soturno cinzento
O céu carregado está diferente
Chuviscos aguaceiros trovoadas
Triste choro rotundo lamento
Das nuvens que passam revoltadas
Tal o céu tal o tempo
Estas gentes deslizam abatidas
Rendidas à evidência do momento
Lambendo o sangue das feridas
Enterradas num cego desalento
Esse lado atrevido irreverente
Comum em tempos de revolução
Extinguiu-se fez-se em nada
Essa letargia de opinião
Mais parece agonia prolongada
Sem que desperte reação
Efémeros sinais reativos
Mais não são
Sem real foco apelativo
Uma agonizante mansidão
Talvez até agente passivo
Ou será que as manifestações
De um milhão se esvaziou no tempo
E que com o descartar
Da hipótese de eleições
Em fim de dois mil e catorze
Pôs a nu a chantagem de Belém
Vejam lá a quem isto convém
Será então
Um poupar de forças
Por umas quantas quinzenas
Por Setembro e Outubro
Que se aguarda apenas
Para depois sim
Tudo precipitar ao rubro
Interrogo-me
Se é preciso expirar
A geração que viveu setenta e quatro
Para emergir espirito de consciência
Nesta geração bem mais culta
Como em peça de teatro
Que trata a aparência
Mas sem reação forte
A quem mais os insulta
Sigo com atenção
E à distância
Se mudar com coragem
É a opção deste povo
E à partidária alternância
Quem sabe se continuado engodo
Em vez de nova aragem
LUMAVITO
30/04/2015
Se ser poeta é tricotar rima
Cá por mim não sei o que é
Com mão desajeitada mais de horta
Só assenta em contra pé
A malha sai enrugada e torta
Nada que se olhe com estima
Não fosse tal embirração pura
Fui no encalço do que me move
Dicionário em riste para sabichões
Cruzei-me com nove palavras nove
Não é arte nem arquitetura
Sai malha aos arrepelões
Comprima Deprima Dízima
Esgrima Gravíssima Ilegítima
Lágrima Oprima
Reprima Subestima
Das que ao meu sentido
As que mais se adequam
O meu júri elegeu
Cada uma pior que a primeira
Sem jeito roça pesada asneira
Envergonhado de mim Homero
O sentido das palavras adultero
Cada vez mais deprimido
Se todo o problema sou eu
Não são nove são dez
Não acerto nem uma vez
E a rima não arrima
Sinto-me asno perdido
Num gesto de desespero
Puxo a ponta da linha em malha
E a obra desmalha
De disparates um chorrilho
Tenho agora à solta
Uma linha tão comprida
Posso fiar em volta
E tecer livre sem gralha
Deixar fluir sem espartilho
Todos os versos da vida
LUMAVITO
27/04/2015
No espaço do córtex
Brota a imagem
O olhar traça as formas
Dos corpos que se arrastam
Sofridos
Dá-lhes a luz e a cor
Instala-lhes na alma
O som arfado dos gemidos
O cinzel esculpe a pedra
Que carrega a vida no tempo
Cede-lhe sombras e relevos
Presta-lhe sorrisos
Dá-lhe os instantes vividos
Regista a força do momento
Palpita dormente
A mão do escultor
Segura a febre
De rasgar a pedra adormecida
O silêncio…
Esse
Desenterra a dor
Gravada no aurículo esquerdo
Percorre o corpo
Rasga a carne
Calcifica as veias
Chama ténue arrastada
Indelével Entumecida
LUMAVITO
27/04/2015